terça-feira, 12 de abril de 2011

Sobrevivência...



"Já passam das duas da tarde.
Estou faminto!
Passei todo o dia em frente a essa padaria esperando qualquer esmola, qualquer resto de comida, de respeito, de atenção.
Mas, ninguém me vê ou me ouve. Estou invisível na minha miséria que eles parecem não querer enxergar.
Eu aqui, jogado nesse chão, clamando por decência e por caridade, não tenho mais forças.
Há anos venho lutando contra a fome, o frio e o abandono.
O meu corpo está magro, contornado pelos ossos das minhas costelas que se expõem de forma saliente sob minha pele. Os meus pelos estão escassos e os poucos que me restam pelo corpo estão ressecados pela ausência de nutrientes. 
Os meus olhos estão fundos de tristeza e de falta de vitaminas.
Apesar dos meus jovens seis anos, o meu corpo debilita-se rapidamente e quando vejo meu reflexo em alguma possa de água suja pela rua, percebo os sinais que me não me deixam esquecer que estou morrendo violentamente. E de fome!
Perdi a conta de quantas pessoas passaram por mim nessa manhã sem prestar qualquer socorro mesmo diante do meu gritante estado de desespero.
Por vezes nem voltaram seus olhos para mim. Por outras, me encaravam com medo, com nojo, talvez até com pena, mas mesmo nessas horas em que seus olhares cheios de desprezo e repúdio cruzavam os meus olhos repletos de angústia e solidão, mesmo nessas horas, eles pareciam não me enxergar.
Homens engravatados, mulheres distintas e elegantes, crianças bem vestidas e penteadas, como se tivessem saído de um daqueles comercias que vejo nos jornais e revistas velhos abandonados pela rua. Todos passavam inertes a minha situação, como se todo o meu estado deplorável e decadente não pudesse sequer atingir a pose dos seus status social.
Há também diversas pessoas simples passando por aqui. Muitas com incontestável estado de carência. Mas, mesmo elas que certamente sentiam de algum modo a dor da ausência assim como eu, pareciam não me enxergar. É como se os poucos que possuíam a mais do que eu fosse o bastante para que lhes desse segurança suficiente para ignorar meu sofrimento.
Eu bem que queria chamar-lhes a atenção. Talvez se eu pudesse gritar, eu soltaria o longo e arranhado grito de dor que brota do buraco não preenchido no meu estômago.
O problema da miséria é que o vazio que ela causa ultrapassa a ausência material e se transforma em carência moral e emocional diante do descaso com o qual venho sendo tratado.
Em outros tempos, eu até corria atrás. Insistia pela esmola e pela atenção. Fazia travessuras e malabares, perseguia até o limite da paciência deles em me enxotarem para trás. Se quisessem, eu sentava, rolava, fingia de morto. Tudo o que fosse preciso para merecer um resto de comida.
Hoje, eu não consegui sequer me levantar desse chão. Não encontrei força em meus ossos. Passei todo o dia aqui deitado, esperando em prece que eles tivessem caridade por mim.
Mas, vejo que está sendo em vão. Eles estão apressados demais em seus afazeres e vaidades para se importarem. Passam sempre correndo. Desviam de mim na calçada, sem qualquer compaixão, e com isso atropelam e pisam na minha sobrevivência.
Enquanto isso, tudo o que carrego no estômago são os restos apodrecidos de uma maçã que há três dias uma moça me jogou da janela de seu carro, sem sequer se virar para me encarar, nem mesmo para perceber o já enfraquecido brilho dos meus olhos em agradecimento.
Talvez eu pudesse também ter comido ontem os restos do salgado que aquele senhor, ignorando minha necessidade, deixou de me doar e jogou na lixeira da esquina que estava em minha frente. Até que eu tentei, revirei o lixo em procura daqueles restos, no meio daquele amontoado de papéis amassados, metais, plásticos e vidros, todos cobertos da terra e outras sujeiras varridas mais cedo da calçada e umedecidos pela água da chuva que havia invadido aquela lixeira.
Revirei, no limite das minhas forças. Tudo que eu queria eram aqueles restos de alimento cujo cheiro estava me causando um desespero apressado e desconfortante em me salvar da minha fome. Mas, fui impedido por um cidadão qualquer passando por ali, que desaprovando meu ato e temendo a minha bagunça, me pôs a correr sem poder oferecer resistência.
Se no estômago eu apenas carrego aquele resto apodrecido de maçã que tanto mal-estar me fez, no coração eu carrego o sofrimento e a angústia por ser a única testemunha, o único que parece perceber a minha fome, o meu abandono e a minha depreciação.
Em minha mente, eu carrego o questionamento do porquê de tanto egoísmo, de tanto desamor, de tanta indiferença. Por mais que eu deseje, eu não vou poder possuir tudo o que eles possuem, mas já me salvaria hoje se eles pudessem me doar e compartilhar comigo o mínimo, o resto, o pouco que para eles nem fará falta.
Já me salvaria se eles fossem um pouco mais humanos em si mesmos, e me encarassem também como um ser humano, que sofre, que espera, que necessita, assim como todos eles.
Porque eu sou um ser vivo e humano, sou apenas uma criança abandonada, mas eles me tratam como se eu fosse um cão, um bicho, do qual eles podem aproveitar da irracionalidade para disfarçar a sua indiferença.
Por que eu me chamo João, nasci na miséria, não conheço meu pai, e minha mãe e meus irmãos estão afastados de mim, vivendo cada um sozinho nas ruas, todos em busca de sua própria sobrevivência.
Na minha alma, eu carrego a esperança de que eles me percebam aqui e que tenham compaixão de mim. Que me dêem um prato de comida, um carinho e que me ensinem a ler e escrever.
A esperança de que eles me vejam aqui e não me encarem apenas como se eu não fosse mais do que o reflexo dessa minha imagem tão maltratada. Que  não sou feito apenas de miséria e de fome,  que eu também tenho sonhos, sentimentos, desejos. Que eu tenho um passado e um presente que são cruéis, mas eu ainda tenho um futuro, e não quero perdê-lo. Que eu sou feito de vida, e não quero morrer de fome! Que eu quero apenas sobreviver!"


Paulo Henrique Silva Almeida
-PHA-

5 comentários:

  1. Simplesmente perfeito! Seu texto retrata a falta de humanidade por parte das pessoas! Elas desejam ajudar mas, não se importam com os pequenos. Preferem doar a instituições mesmo sabendo que tem muito menores abandonados perto de suas casas. No fundo essa humanidade de hoje tem medo de serem mais humanos!

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  2. Poia, que texto mais lindo!!! Seu talento é inquestionável,fico muito orgulhosa de você! E quero te dar um conselho: registre suas obras em cartório! Saudades! Bjos

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  3. Caramba, to anestesiado com isso que acabei de ler... Cada vez que leio um texto seu fico mais impressionado como vc usa bem as palavras e consegue me fazer enxergar cada cena... vi o João revirando a lata do lixo! Paulo, seu texto está perfeito... e depois nem queria fazer o blog né cabeção? ¬¬

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  4. Muito bom....Parabéns, que vc continue sempre assim . com essa mente iluminada....Vamos partir para o livro...

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  5. Fantástico...acima de tudo, envolvente

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