segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ônibus Fantasma


Era algo em torno das três da madrugada.
O ápice do silêncio da noite.
Lá fora, a noite calma, misteriosa e fria, banhada pelo brilho das estrelas que dominavam o céu  e pareciam atravessar as cortinas escuras das janelas.
De repente, o som de um baque que emudeceu o ronco constante dos motores.
Um vidro estilhaçando.
Pude ouvir o ranger da porta se abrindo.
As luzes se acenderam, quebrando a escuridão dominante no interior do ônibus, apagando os raios brilhantes das estrelas.
O terror havia começado...
Da distância da última poltrona por mim sozinho ocupada, pude reconhecer o rosto e  uniforme do motorista.
Era uma veste azul, agora manchada com o vermelho do sangue que jorrava de sua garganta.
Atrás dele, a sombra escura de um homem, que o segurava como se nada mais fosse que um boneco velho de pano que foi por ele atirado ao chão. Somente então eu pude perceber, ele estava morto.
Encolhi-me na minha poltrona que agora parecia não me caber. Cobri-me até o queixo com o meu cobertor, deixando à mostra apenas o resto da minha face e meu cabelo assanhado pelo chapéu que utilizava e que deixei cair nos instantes em que peguei no sono.
O chapéu estava caído aos meus pés, e tal fato somente pude perceber agora, quando desesperadamente passei a mão pela minha cabeça na tentativa de escondê-lo.
Ainda mais encolhido, me pus a rezar em silêncio.
Em volta, as pessoas se olhavam reprimidas e assustadas. Ninguém falava nada. Um senhor da primeira poltrona que tentou se levantar para clamar por calma foi golpeado e caiu de volta em seu lugar, calando ainda mais as pessoas presentes.
Somente ouvia-se aquele homem da sombra escura, que aos berros pedia o nosso dinheiro, como se fosse a maior de suas necessidades, vital.
Era um homem negro, que mais parecia um bicho. A brutalidade saltava de todos os traços do seu rosto barbudo e encardido. Seus olhos eram pretos e grandes, arregalados, sem qualquer brilho. Exalavam um ódio profundo e indiscriminado, que atingia a todos nós com só olhar seu.
Caminhava entre as primeiras poltronas, com arma de fogo em punho na mão esquerda. Na direita, exibia o canivete já sujo da morte do motorista.
Distribuía ordens e agressões e recolhia como podia todos os objetos de valor que encontrava.
Todos continuavam em absoluto silêncio, a não ser pelo murmurinho das orações e pelo choro mal contido de algumas mulheres.
O silêncio se quebrava cada vez mais. Agora pelo som dos tapas, socos e gritos queixosos daqueles que estavam sendo agredidos.  Quebrava-se ainda, pelo riso ensurdecedor daquele homem, que parecia satisfazer diante da dor que provocava.
Os homens eram suas principais vitimas. Era como se ele quisesse eliminar toda possibilidade de resistência. As mulheres eram golpeadas a tapas até que entregassem todos os brincos, colares e pulseiras que ostentavam em seu corpo.
Um senhor de avançada idade, que tentou esconder o aparelho celular da netinha que o abraçava apavorada ao seu lado, foi ordenado a ficar de pé e a juntar as mãos uma em cima da outra, para que fossem rasgadas pelo canivete que as atravessam. Apesar da distância, pude ver que as lágrimas silenciosas corriam de seus olhos. Ele não gritou. Talvez para não assustar ainda mais a netinha. Talvez porque seu velho corpo não suportasse produzir um grito para uma dor tão grande. Eu berrei dentro de mim.
A sua raiva parecia ser cada vez mais crescente. Ele vinha dominando o ônibus pelo corredor com a sua violência. Somente o dinheiro não parecia bastar. Ele queria tudo, ele queria a paz, o sossego e a vida de cada um ali presente.
Uma senhora que resmungou levou tiro na direção da face. Não sei dizer se estava morta. Apenas sei que não ouvi mais o seu resmungo.
Toda a tensão aumentava a cada instante. O absoluto estado de desespero nos consumia. E quanto mais desesperados ficávamos, mais agressivamente ele reagia. Certamente pelo receio de que as coisas saíssem do seu controle. Ou mesmo porque aquele desespero alimentava-o e o impulsionava a continuar. Tiros e mais tiros eram disparados aleatoriamente.
Ele vinha invadindo cada vez mais o interior do ônibus, já chegando à parte central. Eu sabia que cada passo lhe trazia para mais perto de mim. O nosso encontro seria inevitável. Por um segundo, tive a impressão que meu olhar apavorado cruzou os seus olhos pretos e arregalados.
Uma jovem moça, a mais linda que eu havia percebido ali, foi agarrada pelos cabelos e arrastada de volta até a porta. Como a querer nos proporcionar um show de horror, ele intencionalmente a pôs na frente do ônibus, para que pudéssemos assistir enquanto ele mordia vorazmente a pele de sua face e seu pescoço, enquanto suas mãos a dominavam em seus seios, suas pernas e seu sexo. Ela gritava. E apanhava. Ele sorria. E mesmo não consumando o ato sexual, ele parecia plenamente satisfeito, até o momento que arremessou a moça com toda a força contra o chão e, pisando sobre o seu corpo, voltou a caminhar em nossas direções.
Olhei apreensivamente pela janela na esperança de encontrar qualquer ajuda. Mas, estávamos completamente abandonados naquela estrada. Ele parecia ser a única força existente e se voltava contra nós.  E estava cada vez mais perto de mim.
Há duas poltronas a minha frente ele parou diante de uma mulher que, aos prantos, amamentava seu pequeno bebê de apenas dois meses de vida. Sem pronunciar uma palavra sequer ela lhe ofereceu a bolsa, que ele não pegou. Aliás, ele sequer viu a bolsa estirada em sua direção. Seu olhar pareceu vidrado naquela pequena criança. Era como se aquela cena, maternal, inocente, o tivesse remetido para a pureza de um momento da sua vida que ele sabia nunca mais retornar.  Por um instante, pude enxergar um rastro de humanidade em seus grandes olhos, agora silenciosamente comovidos.
Ele pareceu tomado por um remorso de toda a sua vida, de tudo que havia se transformado. Demonstrou cansaço, como se pudesse sentir agora sobre as suas costas o peso de ser monstro. Havia uma saudade e uma inveja transparente daquela pureza. Ele berrou e atirou para o alto, interrompendo a humanidade que o tocava, como a fugir dela, e voltou ao seu espetáculo de horror.
O cheiro misturado de sangues era cada vez mais forte dentro do ônibus.
Olhou para mim. Senti de novo o gelo do seu olhar como se ele ameaçasse a devorar-me os rins e o pâncreas. Pediu-me dinheiro. Não reagi. Não conseguia me mover a não ser para encolher-me ainda mais debaixo do escudo que o meu cobertor representava.
Ele se irritou comigo e gritou ainda mais alto. Olhei pela janela. Lembrei da cena da minha acenando para mim enquanto eu partia. Quis chorar.
Senti o corpo dele se jogando sobre mim a puxar meu cobertor e, com isso, me descobrindo de todo o resquício de proteção que eu ainda sentia.  Berrou de ódio ao olhar para mim, como se tivesse sendo traído e ameaçado. Cuspiu no chão.
Com o meu corpo descoberto, ele pôde perceber aquilo que já teria sido antes denunciado se o meu quepe não tivesse caído aos meus pés: a minha farda militar, que há apenas duas semanas eu usava, quando finalmente me formei na escola de soldados, no auge dos meus vinte e poucos anos de idade.
A sua raiva pareceu crescer descontroladamente. Tanto, que o cegou para o fato de que eu sequer estava armado. Ele se lançou sobre mim com socos, pontapés e golpes de canivete, buscando reprimir toda uma resistência que nem por um segundo eu havia apresentado.
Sentia meu corpo dolorido. O sangue escorria de vários lugares do meu corpo e manchava a minha farda. O cheiro do meu sangue era ainda mais forte que qualquer outro ali dentro.
Caído sobre as duas poltronas eu pude sentir o peso do seu corpo se afastando. Ouvi os tiros da arma sendo descarregada contra mim. Lembrei mais uma vez da minha mãe e do seu aceno, enquanto sentia meu corpo queimar com a pólvora das balas que explodiam no seu interior.
Tudo se escureceu.
E apesar do meu grito agoniado, o riso daquele homem foi o último som que eu ouvi.
                                                                                                                   

        Paulo Henrique Silva Almeida
-PHA-

4 comentários:

  1. Amigo esse texto seu ficou otimo... caraca, eu viajei ate esse onibos e vi todos os momentos de terror... fiquei com ooooodio desse assassino e desse militar frouxo! Nam... mas ta perfeito viu!

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  2. Quase nem respirei lendo seu texto...
    me senti mais uma passageira...

    Formidável!!

    ( não vejo o militar como frouxo, e sim como alguém marcado para morrer, pois se houvesse uma única chance aos outros, prá ele não existia nenhuma!)

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  3. Oi Paulo,

    O texto é forte e segurou o interesse até o final. Todavia, confesso que fiquei com medo porque a farda negava todas as esperanças daquele homem. Parabéns!

    Beijos.

    Lu

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  4. li cada palavra...o texto é longo, mais valeu a pena. Seja bem vindo a blogosfera !

    Seguindo !

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